domingo, 27 de julho de 2014

Lilica


Lilica
Silvia Britto

Estou convicta de que a Lilica é um anjo que vive entre nós. Chegou até nós com a suave missão de ensinar-nos as palavras resignação e altruísmo.
É muito amada pela imensa família de tios e primos que temos espalhados pelo Brasil afora e sempre encanta a todos que a conhecem por sua doçura e transparência infantil.Sou totalmente apaixonada por ela e não vejo minha tarefa de ter que cuidar dela como obrigação. Faço com prazer e muito carinho e não há espaço para nenhum outro sentimento que não seja amor na tarefa de cuidá-la.
Mas nem sempre foi assim. Minha irmã mais velha. Seu nome verdadeiro é Liane e é como eu sempre a chamava, numa tentativa de mantê-la afastada de mim. Quando criança, eu tinha os mais variados sentimentos em relação a ela. Enxergava-a, com meus olhos de criança, como uma menina problemática, que roubava toda a atenção da minha mãe e a fazia sofrer. Não raro, escutava minha mãe lamentando-se, dizendo que ela era uma "cruz" que Deus havia destinado para sua vida. Dramática, a minha mãe. Não estou dizendo que ela não amava a Lilica com todas as suas forças! Não! Minha mãe devotou sua vida a ela! Mas reclamava...
Cresci ouvindo aquelas lamúrias e acredito que essa foi uma das principais razões que sempre me afastaram de Deus. Por que seria Ele tão mau a ponto de fazer aquilo com a nossa família? Na escola que frequentávamos juntas, Lilica sempre foi tratada como "diferente". Não descia para o recreio com o resto da turma e ficava da janela, observando a brincadeira. Crianças de cinco anos podem ser muito cruéis e lembro-me das meninas da turma provocando-a do pátio, mostrando a língua com as mãos nas cinturas e debochando da sua "deficiência" de aprendizado. Eu, criança, ainda aprendendo a entender o mundo, sentia-me envergonhada por ela ser minha irmã e engrossava o coro de deboches a ela.
Também foi por sua "culpa" que tive que deixar minha cidade, minha família e meus brinquedos para trás, em São Luis - MA, para vir morar no Rio de Janeiro. Viemos em busca de um tratamento que, mais tarde, mostrou-se ultrapassado e inútil. Lilica cresceu na idade biológica mas manteve a mente de uma criança de 4 ou 5 anos de idade.
Ninguém tem ideia do peso que carreguei por toda a minha vida por causa dessa atitude, literalmente, infantil a que me permiti. Foram alguns anos de análise tentando perdoar-me por aquele comportamento. Por mais que eu não passasse de uma criança, nunca me perdoei. Tento agora expurgar essa culpa, de uma vez por todas, abrindo o meu coração neste texto.
E os anos iam passando, Lilica crescendo, e minha mãe a tornava cada vez mais dependente. Na minha opinião, minha mãe errou muito na maneira com que conduzia a sua "sina". Mas não tenho o direito de julgá-la, pois sei que errava por amor. Ressentia-me também do fato de a mim ser jogada a inteira responsabilidade de continuar carregando o "fardo" depois que minha mãe partisse. Na sua tristeza emocional, mamãe não percebia o peso que sempre colocou na minha vida. Ela buscava minha total resignação e eu a afrontava diretamente, dizendo que aquela árdua tarefa eu não assumiria. E vivíamos as duas, infelizes nessa incerteza. Felizmente, Lilica não se deixava atingir por aquelas emoções pequenas e a tudo assistia com um olhar maduro e muito mais sábio do que nós, ditas "normais".
Até que o destino seguiu seu curso e nossa mãe nos deixou. Nossas atenções, mais do que chorar a perda da minha mãe, canalizaram-se todas para a Lilica. Como ela reagiria sem a sua escudeira de toda uma vida? Mais uma vez ela surpreendeu a todos e encarou a morte com a naturalidade que só os sábios possuem. Com sua simplicidade e doçura, tranquilizou-nos e mostro-nos que caminhos seguir. Finalmente pude juntar-me ao meu irmão e expor toda a angústia que carreguei por toda a minha vida. Felizmente, ele nunca pensou que eu seria a única responsável pela Lilica. Na verdade, também achava que essa responsabilidade cairia sobre ele, que sempre foi mais próximo da família do que eu, com minha rebeldia, permitia-me ser. Pudemos abrir nossos corações e, juntos, chegamos a melhor das soluções, em que dividimos os cuidados da nossa amada Lilica. Foi um alívio tanto para mim, quanto para ele, que vimos nossas preocupações divididas pela metade e, sem o peso do remorso, muito mais fáceis de serem vividas.
Hoje, estou completamente livre de qualquer mágoa ou culpa que possa ter tido ao longo da minha vida com relação a essa questão e cuido da Lilica com muito amor e alegria. Ela é, sem dúvida, um anjo que nos ensinou a sermos mais fortes e a esperarmos a hora certa para lidar com as dificuldades. Ensinou-nos que a preocupação antecipada é coisa de gente imatura, que passa a vida combatendo dragões imaginários que não passam, na verdade, de borboletas libertadoras.
Torno a repetir que sou totalmente apaixonada por ela e que cuidar de um anjo assim, não apenas é uma alegria, como um privilégio!

Lilica, eu te amo!

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