quarta-feira, 2 de julho de 2014

Viagem ao centro de mim



Este texto eu mandei, há 3 anos, para um amigo que chegou de forma intensa à minha vida. A memória mandou buscá-lo para que eu mesma tentasse  entender um pouco mais de mim. De alguma forma, é muito importante, para mim, externalizar de onde eu vim...

                                                Viagem ao centro de mim  
                                                Silvia Britto                                                                                                                        
Por favor, desculpe-me pelo meu desabafo.

Quem mandou querer ser meu amigo? Esse é o preço que pagam os que me amam. Nem sempre é você o receptor de minhas lavagens de alma. Dessa vez, algo me disse que tinha que ser você. Talvez porque me conheça há pouco. Cheguei de maneira muito intensa, como sempre, e acho que você deveria conhecer um pouco da minha história, até para que entenda um pouquinho melhor esta pessoa, aparentemente tão sem noção, que chega sempre atropelando, com sede de risos e brincadeiras.

Concordo com você. Acho que esse vazio pode ser a ausência de uma presença maior. De alguma coisa que dê sentido a nossa existência. Concordo até com o fato que essa "coisa" possa ser chamada de DEUS. Mas veja bem, não é por resistência e sim por não saber o caminho, que não chego até Ele. Não posso ser hipócrita e dizer, de uma hora para a outra, que creio. Seria a mesma coisa que dizer que posso voar. Talvez até possa... Mas não sei como! Sempre percebi que as pessoas que creem, são mais serenas, até mesmo mais acomodadas com o que a vida lhes oferece. Uma parte de mim as inveja. Mas é como se não fosse pra mim.

Você diz ter aprendido com sua mãe a não gostar de coisa pouca. Que maneira mais linda de aprender!
Não acho que tenha sido fácil.Tenho certeza de que você também teve momentos muito difíceis a percorrer. Não é simples para ninguém. E se chegou até aqui, lindo dessa forma, o mérito é todo seu. Por saber ouvir os conselhos. Por ter conseguido ter Deus em seu coração. Também aprendi. Mas foi levando tombo atrás de tombo por essa vida afora. Sempre tive que me contentar com migalhas. Com o que sobrava. Era isso ou nada. Até que um dia acordei, quebrei o vidro e vi que não precisava ser assim. Que não era pra ser assim. E comecei a fazer parte do mundo dos que vivem, deixando para trás o dos que assistem. Mas não tive a sorte de ter uma base sólida como a sua. Percebo, com encantamento, a sua emoção ao falar de seus pais, de seus irmãos. Não acho que era para ter sido diferente comigo. Temos que lidar com o que vem na nossa cesta.  Considero-me uma sobrevivente. Que bom que sou teimosa e inconformada. Mas sinto que preciso de algo mais sólido para firmar meus pés no chão e encontrar minha tranquilidade.

Apesar de tudo, me sinto vitoriosa de chegar até aqui. De conquistar pessoas tão especiais quanto você. Aliás, acho que você não poderia ter sido mais feliz ao me comparar a um diamante. Não estou querendo ser arrogante. É como sinto ser a minha essência. Ainda bruto. Mas completamente receptivo para ser lapidado e me tornar cada vez melhor. Principalmente para poder continuar a desfrutar da companhia de pessoas maravilhosas que cruzam o meu caminho.
Minhas intenções sempre são as melhores possíveis, mesmo que um pouco atrapalhadas. Sou intensa no meu amor e tento ser indiferente aos que não me fazem bem. O riso e a dança são armas poderosas que me permitem a liberdade da alma. Também sinto-me plena e feliz quando em contato com amigos queridos pelos Cafés da vida, nas salas de aula, nas esquinas do mundo...

Sou a segunda de uma família de três filhos.Tenho uma irmã mais velha que ainda muito pequena demonstrou ter problemas mentais: retardo de aprendizagem. Por causa de sua deficiência, minha família mudou-se para o Rio, em busca de ajuda, quando eu tinha seis anos de idade.Também tenho um irmão mais novo, homem, caçula. Sempre foi o xodó de minha mãe. Não me queixo. Só constato. Desde muito cedo, vi-me imprensada entre esses dois polos poderosos: uma irmã mais velha, problemática, que necessitava de cuidados especiais, e um irmão mais novo, a quem mimos não podiam faltar. A sensação era de completo abandono. Infelizmente, eu era "normal". Não culpo minha mãe. Imagino o que deve ter sido para uma jovem de vinte e um anos, cheia de planos e sonhos de vida, deparar-se com a dura realidade de ter tido uma primeira filha que necessitaria de cuidados para o resto de sua vida.

Repare que só me refiro a minha mãe. Meu pai era ausente emocionalmente. Bom provedor. Nada nos faltava materialmente. Estudei em um bom colégio graças ao seu esforço diário. Mas não estava ali para suprir, pelo menos um pouco, a lacuna emocional deixada por minha mãe. Bebia. Aos sábados. Engraçado. Não posso falar que meu pai era um alcoólatra tradicional. Bebia aos sábados. Era quando transformava-se em outro homem. Ria alto, falava besteiras, era inconveniente. Completamente diferente do homem que morava conosco durante a semana. Dizia que a bebida lhe deixava livre e feliz. Isso me causava uma enorme mágoa. Como assim? Então nós não lhe dávamos felicidade? Também, por vezes que nem me lembro mais, traiu minha mãe com aventuras amorosas por onde passava. Ela brigava, irritava-se, mas acabava perdoando e classificando as traições como "coisa de homem". Nunca concordei com isso. Não me cabe julgá-la. Mas eu não o perdoava. Sentia que a traição se estendia a mim e meus irmãos. E isso criou um abismo entre nós. Nunca consegui abraçar meu pai com todo o amor normalmente dedicado aos pais. Eram abraços de mágoa, por obrigação social. Esse foi o Dr Britto.

Lembro-me de haver tentado "adotar" uma mãe. Havia uma vizinha solteirona, muito querida, em São Luis, que me queria como a uma filha. Passava muitos de meus dias em sua casa, nesse refúgio que encontrei. Havia até mesmo um quarto especialmente para mim em sua casa! Sentia-me especial, paparicada, mimada, uma princesa. Mas isso me foi arrancado aos seis anos de idade, quando me mudei com a família para o Rio de Janeiro. Nesse momento, começou o meu vazio interno.

Constantemente, era deixada a minha própria sorte. Era o preço que pagava por ser "normal" e responsável. Brincava só. Não tinha amigos. Não ia ao cinema, clube ou parques como os colegas de escola. Tinha vergonha disso. Adorava ficar doente. Eram os momentos em que me eram destinados cuidados e mimos. Tenho vergonha de assumir isso. Zombava de minha irmã, mesmo com o coração apertado, só para poder ser aceita pelas outras meninas da escola. Mesmo sabendo, através de horas inesgotáveis de análise, que eu era apenas uma criança tentando conquistar meu espaço, não me perdoo por isso.

Uma vez você me questionou, como se fosse a coisa mais normal do mundo, se minha mãe não rezava comigo quando eu era pequena. Senti vergonha. Não me recordo nem dela contando estórias, que dirá rezando comigo! Também não ia a reuniões de pais na minha escola nem a festas comemorativas. Sinceramente, não sei o porquê... Acho que ela não achava importante, vai saber. Mas eu transferia essa falta de importância para mim. Afinal, ela não perdia nada na escola de meu irmão! Eu me levantava sozinha, às seis horas da manhã, e seguia direto para a escola, que começava às sete. Não tomava nem café! Minha mãe ficava dormindo. Nunca quis acordá-la. Via o duro que ela dava pra cuidar de três crianças e trabalhar fora, sem empregada. Não quero passar a ideia de que era uma mãe relapsa. Não. Era uma mãe cansada com a vida. Ainda jovem mas já conformada com o que Deus havia lhe destinado. Talvez aí tenha começado meu desconforto. Será que crer em Deus era isso? Conformar-se em ser infeliz e não lutar para melhorar a própria vida? Crer em Deus sempre me pareceu ser uma coisa muito resignada, conformista e retrógada.

Eu era apenas uma criança de oito anos mas já carregava nos ombros a pesada responsabilidade de sobreviver.
Ia sozinha, pelas ruas, ainda escuras, à escola "salvadora". Sim. Era o lugar onde me sentia a salvo. Onde desenvolvia meu mundo e minhas tímidas conexões com as pessoas. Consequentemente, tornei-me uma excelente aluna. Ali era o meu mundo. Não gostava de férias. Era como se fossem férias de viver. Por isso digo que cresci carente de brincadeiras.

Os únicos momentos felizes de que me recordo, eram as férias passadas em São Luis, com primos queridos e com as brincadeiras que me foram arrancadas ainda cedo. E os Natais. Os presentes. A árvore colorida. 
E a ilusão de família unida e feliz que via nos filmes da TV.

E assim fui crescendo. À toa. Ateia. E assim seguiram-se meus anos. Vazios.

Prometi a mim mesma que um dia teria essa família tão desejada. E cumpri. Por muitos anos tive um marido companheiro, fiel, carinhoso e que cuidava de mim como ninguém. Nunca o vi bêbado em trinta anos de convivência. Esse amor deu um fruto lindo, nossa filha. Éramos uma família pequena mas éramos felizes. Tomávamos café-da-manhã juntos, brincávamos, jogávamos frescobol na praia, discutíamos e acima de tudo nos amávamos. E assim passaram-se trinta anos de minha vida. Finalmente sentia-me amada e completa.

Mas a vida não é fácil. Meu casamento acabou, chocando a todos que nos conheciam, inclusive a nós mesmos. O carinho não acabou. Nem o amor. Mas o tempero, que faz um homem e uma mulher quererem dividir seus dias e suas vidas. Com o fim do casamento veio a solidão física, real. Quando essa juntou-se à solidão interna, antiga companheira de meus tempos de criança, trouxe um sentimento avassalador de vazio. Num primeiro instante, fiquei sem chão. Não sabia onde me agarrar para não cair. A vida não nos prepara para certas coisas. Mas aos poucos fui me refamiliarizando com essa antiga companheira. Acolhi-a. Não consigo resistir a sua força. Tento usá-la com mais sabedoria. Tento fortalecer-me com ela ao invés de sucumbir à sua força.

Decidi que, se estou aqui, é para ser feliz. E luto com unhas e dentes para alcançar essa meta. Mas ninguém sabe a força que faço para conseguir. É uma luta diária, pois a felicidade é agora, da qual saio vencedora na maioria das vezes. Mas há dias, como hoje, em que a solidão entra sorrateira, enquanto durmo. Não tenho como rebatê-la. O jeito é conviver com ela. Chorar, deixar o peito doer e esperar um novo amanhecer, talvez mais feliz.

E nessas horas, volto a ser criança. Tenho oito anos. Caminho pelas ruas como se estivesse novamente naquelas manhãs escuras de infância, carregando livros imaginários e com o estômago vazio de café-da-manhã, cuidado e amor.


2 comentários:

  1. Nem sei o que dizer além de que temos algo em comum...

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    1. Poxa, meu anjo... Tenho certeza de que temos muitas coisas em comum. Gosto muito de você, Coelhinho. Beijo em sua alma!

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