segunda-feira, 14 de abril de 2014

Socorrendo a Gramática


Socorrendo a Gramática
Silvia Britto
 
Começo este texto deixando pública e notória a minha paixão antiga pela nossa língua pátria. Amo o Português desde que aprendi que "s" era de “Silvia” e de “sereia”. Sentia-me a própria princesa dos mares. E assim nascia a percepção de que as letras poderiam levar-me aonde quisesse ir.
Como boa amante, sinto-me pessoalmente ofendida quando o objeto de minha paixão é
desrespeitado ou diminuído. Isso já me rendeu longas e penosas conversas com a intenção de manter ou resgatar a integridade do meu amor.

Eis o que me aconteceu outro dia em uma famosa loja de chocolates.
Entrei na loja com a intenção de comprar algo para retribuir um presente recebido que muito me emocionara.
Dou imediatamente de cara com uma barra de chocolate que parecia me chamar, de tão perfeita que era para a ocasião.
Nela se lia, em delicioso chocolate branco, a palavra "Obrigad-o". Pensei imediatamente: achei!
E iniciei a óbvia busca pela barra em que se leria "Obrigad-a". Procurei, em vão, por entre as mais de  20 barrinhas que se acumulavam na linda cestinha. Nada. Deduzi, muito obviamente também, que as mulheres, sempre mais conectadas e agradecidas, haviam esgotado o estoque de "Obrigad-as" antes da minha chegada.
Vendo minha decepção e ar de desolamento, aproxima-se uma simpática e sorridente vendedora.

- Posso ajudar?

Explico-lhe meu problema e pergunto se não haveria em estoque uma barrinha em que se lesse "Obrigad-a".
Ela ri. Provavelmente pensando que isso seria muito fácil de resolver.
Com toda sua simpatia treinada, responde:

-Ah! Mas é assim mesmo que se fala: "Obrigad-o"!

Compenetrada, continua sua explicação:

- Já reparou que quando temos várias pessoas juntas, basta que apenas uma delas seja homem para que nos refiramos ao grupo todo como ELES? 
Como não obtivesse resposta ante minha expressão perplexa de "e...???", tratou logo de ir respondendo:
- Pois é. O certo é dizer "Obrigad-o", pois há muitos homens no mundo. É genérico, entendeu?

Respirei fundo. Uma. Duas vezes. Pensei. Havia dois caminhos a seguir. Eu poderia simplesmente agradecer a brilhante explicação e levar um pacote de gotinhas de chocolate, igualmente deliciosas e infinitamente menos complicadas que a minha barrinha. Mas não resisti. Tinha que defender o meu amor. Retruquei, com um ar de profunda intimidade com a matéria:

- Não querida. Há "Obrigad-O" para menino e "Obrigad-A" para menina.

Diante de tanta assertividade, foi a vez dela ficar com expressão de "como assim?". Isso me deu animação para continuar. E antes que ela contra-argumentasse, rapidamente engatei, com uma satisfação quase perversa:

- E tem mais. Sabia que se formos as duas a agradecer, dizemos "Obrigad-AS"!

Ao que ela respondeu, entre incrédula e maravilhada:

- Não!!! Verdade? Fala sério!!

Final da história: saí da loja sentindo-me imensamente feliz e contente. Minha simpática vendedora já tratava de espalhar a novidade às suas colegas de balcão. Sentia-me realizada. Defendera minha grande paixão e, de brinde, salvara mais uma alma da ignorância gramatical. Essa aí pelo menos aprendera a agradecer direito.

Infelizmente, também tive que me contentar em levar a barrinha onde se lia, numa caligrafia rebuscada e apetitosa: "OBRIGAD-O" !


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